Cangaço muito além dos cangaceiros.

Sobre o livro
Guerreiros do Sol - Violência e banditismo no Nordeste do Brasil
Frederico Pernambucano de Melo
Editora A girafa - 4ª Edição - 2005. Escrito originalmente em 1985
458 páginas
ISBN: 85-89876-19-5
Cangaceiros. Muito provavelmente você, amigo leitor desse blog, já deve ter visto alguma novela ou seriado falando desse tipo tão característico do nordeste. Também deve ter ouvido falar de Lampião, o mais famoso e famigerado dos cangaceiros. Figuras muitas vezes retratadas de forma caricata e engraçada como na novela Mandacaru, na extinta rede manchete....ou ainda, mostrados hora como bandidos sádicos e cruéis hora como defensores dos sertanejos contra os terríveis coronéis do sertão brasileiro. Seja como for, a figura do cangaceiro, com sua vestimenta típica e o inconfundível "chapéu de couro quebrado na testa" faz parte da cultura e do folclore do Brasil.
Entretanto , caro leitor, e se eu te disser que, para além das caricaturas e da "novelização", o cangaço foi uma expressão da realidade política e social brasileira com profundos laços nas raízes da colonização do nordeste do Brasil, resultado de um amálgama trágico do clima seco do semiárido nordestino com a desigualdade implacável que a população dessa região sofreu e sofre até hoje?
É com o propósito de trazer luz ao tema cangaço, que Frederico Pernambucano de Melo produziu um estudo incrivelmente completo, denso, detalhado, trazendo relatos obtidos diretamente das pessoas que viveram nessa época (cangaceiros, sertanejos, coronéis, policiais...) e com abundante referência a jornais e publicações também do mesmo período.
Com uma escrita leve, direta e quase poética, o autor traz uma análise profundamente social procurando demonstrar as causas do surgimento do cangaço e como essa expressão de violência no nordeste assumiu várias facetas, ou seja, não existe "O cangaço" mas "alguns cangaços". Como exemplo o, autor classifica o cangaço em três tipos: o cangaço de vingança, cangaço de refugio e cangaço como meio de vida. Cada um desses tipos, trazendo um contexto social como motivação principal.
É uma obra tão ricamente escrita que o autor traz até mesmo as cantigas e músicas oriundas da tradição popular e da literatura de cordel para ilustrar como o nordestino comum via e sentia muitas vezes na própria pele o que era o cangaço e os cangaceiros. Além disso, muitos documentos e cartas trocadas entre as autoridades da época são amplamente reproduzidas no livro, mostrando também como as autoridades viam os cangaceiros, hora como bandidos que precisam ser detidos, hora como instrumentos para serem usados em disputas politicas entre os coronéis do sertão.
E é claro que o autor não poderia deixar de fora falar sobre Virgulino Ferreira, o Lampião. Ao ler a obra, percebi que quase sempre quando alguma mídia vai falar sobre o cangaço, está falando de uma fase dessa expressão, a fase que mais ficou marcada no imaginário da população e que teve como representante máximo o Lampião.

Lampião foi o cangaceiro de carreira mais longeva no cangaço, mais de 20 anos de atuação, definindo a estética do que imaginamos hoje quando falamos em cangaceiro. Como quase todo expoente que define uma época, Lampião foi um gênio nesse tipo de oficio, soube não apenas criar uma lenda em volta de seu nome, mas também em organizar os grupos de cangaceiro em cadeias de comando, negociação com coronéis e políticos regionais além de profundo conhecimento em táticas de guerrilha. Lampião soube, de uma forma contraditória mas altamente eficaz, fazer coexistir uma brutalidade cruel de seus atos com profundo credo religioso. Para se ter uma ideia, Lampião carregava em pequenos canudos de madeira preso as roupas orações fortes, para fechar o corpo....
Por fim, recomendo muito a leitura dessa obra. Ela nos proporciona conhecer com mais clareza e de forma aprofundada, sem cair no marasmo que as vezes um texto acadêmico traz, uma parte tão característica da nossa história que provoca até hoje revolta e paixões, que serve de inspiração de tantas outras expressões culturais e que foi algo único que aconteceu aqui no Brasil.
Para mim, filho de nordestinos, foi uma viagem incrível para entender não apenas as minhas raízes, mas também, nossas raízes como sociedade.
Para conhecer mais sobre o autor:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Frederico_Pernambucano_de_Mello
Algumas frases do livro:
"...as forças que deram vida ao cangaço são as mesmas que inflaram estes e outros tipos de criminalidade regional conferindo-lhes existências irmãs e, sob tantos aspectos, complementares e interdependentes, ao abrigo de uma mesmo moldura de tempo e espaço..."
"
Eu junto meus cangaceiros
E Grito à rapaziada
Defunto é minha lavoura
Este rifle é minha enxada
A chuva é a munição
Eu sou filho do sertão
Não perco uma só botada"
"... ainda de poder, de notoriedade, de fama e de ganhos patrimoniais, soma que se funde num compreensível ideal burguês que, numa sociedade economicamente estagnada e de baixa mobilidade vertical, a vida das armas podia proporcionar, sendo aliás uma das poucas vias de consecução a curto prazo de tais metas..."