O horror, o horror...
Sobre o livro:
Coração das trevas
Joseph Conrad
Editora Darkside Books - 2021. Escrito originalmente em 1902.
171 páginas
ISBN: 978-65-5598-099-8

Imagine-se navegando por um longo e caudaloso rio. Você está em um barco a vapor em meados do século 19. Esse rio corta uma floresta tropical, densa, misteriosa, sufocante que esconde histórias absurdas que você ouviu apenas de conversas de marinheiros que retornaram à beira da loucura de uma expedição do local exato que você está indo agora.
O calor úmido gruda na sua pele, é uma terra estranha, inexplorada. Você se lembra de algumas histórias e alertas que foram feitos para você antes de embarcar.
Nessa terra, existem homens... Ou será algo diferente disso? Com a pele escura como o mais escuro âmbar, selvagens que devoram os homens, mas, mais do isso, devoram suas almas deixando-os à beira da loucura.
Você está nessa terra, indo encontrar um homem, que foi contratado para explorar as riquezas desse lugar, marfim, peles, borracha de seringueira. E, de uma forma que você não imagina, esse homem está há meses nessa terra e não apenas está vivo, mas parece que ele mesmo agora é parte desses homens da cor da noite, liderando-os, abraçando a loucura...
Achou interessante o parágrafo acima? Pois essa é uma pequena síntese que eu mesmo escrevi procurando traduzir o que senti ao ler o Coração das Trevas.
Joseph Conrad, o autor do livro, nasceu na Polônia no ano de 1857 e é um caso raro na sua época de autor que não era originalmente de língua inglesa, mas que teve grande destaque em publicações neste idioma. Nasceu como Józef Teodor Konrad Korzeniowski na cidade ucraniana de Berdyczew e desde pequeno, recebeu o gosto pela leitura de seu pai Apollo Korzeniowski , que tinha pretensões intelectuais,: era poeta e traduziu para o polonês as obras Os trabalhadores do mar de Victor Hugo e Os dois cavalheiros de Verona, de William Shakespeare. Além disso, Apollo estava envolvido em movimentos insurgentes (na época a Ucrânia fazia parte do império russo) o que lhe custou um tempo na prisão e exílio de toda família para a remota e gélida província russa de Vologda. Foi nesse período que sua mãe, Ewa Korzeniowska, contraiu tuberculose e faleceu em 1865, quando Conrad tinha apenas sete anos. Saindo do exílio para a Polônia, o pai de Conrad contraiu a mesma doença e também veio a falecer. Joseph passou a ser educado pelo tio materno, Tadeuz Bobrowski.
Quando atingiu a maioridade, Conrad se mudou para a França onde ficou por quatro anos estudando até se mudar novamente para a Inglaterra, país que o acolheu e concedeu a cidadania, vivendo até a sua morte em 1924.
Durante sua vida na Inglaterra, Conrad exerceu duas profissões: marinheiro e escritor e até que em dado momento de sua carreira, conseguiu se dedicar totalmente à escrita.
O interessante aqui é que perto do fim de sua carreira marítima, Conrad assinou um contrato de três anos com uma companhia belga que explorava as riquezas do Congo. Seu contrato destinava-se a substituir o capitão do barco a vapor Ville de Maceio e descer o rio Congo fazendo o transporte das mercadorias. Importante mencionar que o antigo capitão do navio havia sido morto pelos nativos e por isso, Conrad foi contratado para substituí-lo.
Essa experiência haveria de marcá-lo para o resto da vida
Foi dessa marcante experiência que surgiu a obra Coração das trevas. O livro não se trata de um relato dessa viagem, tão pouco tem abordagens biográficas, mas fica evidente que os cenários, situações e o clima descrito no livro têm muito do que Conrad viveu no Congo.
Abro aqui um pequeno parêntese para lembrar ao amigo leitor que nessa época, o Congo passava por uma das mais terríveis e cruéis experiências coloniais praticadas por um país europeu. Sob o domínio de Leopoldo II, estima-se que até 15 milhões de congoleses foram mortos, além de um número incalculável de mutilados.
Voltando ao livro e a Conrad.
Coração das trevas não é um romance fácil de ler. O autor tem um estilo de narrativa densa, complexa e com muitos detalhes. É o tipo de leitura que exige do leitor atenção para não perder detalhes e nuances que fazem toda diferença na narrativa.
Essa complexidade premia o leitor com uma prosa envolvente, vibrante e sensorial. Ao mesmo tempo em que descreve uma paisagem pitoresca, trazendo o leitor para se sentir no ambiente narrado, consegue traçar também uma paisagem da mente dos personagens na cena. E é justamente nesse aspecto psicológico da narrativa de Conrad que mais me impressionou.
Durante o transcorrer da história é possível perceber a degradação física e mental dessa experiência. O personagem principal do livro, o capitão Marlow, faz uma viagem exatamente como a que Conrad fez, descendo um rio passando por postos coloniais onde é possível quase que sentir os ambientes cruéis e insalubres, a sensação de incerteza e absurdo que tudo aquilo a sua volta traz. Isso sem falar de Kurtz, esse enigmático personagem central do livro onde a crueldade e o absurdo se encontram provocando uma das cenas mais impactantes do livro.
Sem dar mais spoilers, eu recomendo a leitura. Vai exigir um pouco do leitor, mas a conclusão da história recompensa o esforço. É um clássico literário que traz um retrato triste e terrível de uma época.
O coração das trevas serviu de inspiração para diversos outros textos e filmes. Uma obra bem famosa é o filme Apocalipse Now, com Marlon Brando, que praticamente transporta a cena da história de Conrad para a guerra do Vietnã.
Por fim, essa edição em específico que li, além da história principal de Coração das trevas, possui também um capítulo com anotações do diário de Conrad quando esse fez sua viagem pelo Congo e um capítulo adicional trazendo mais informações sobre as atrocidades que Leopoldo II fez naquele país.
Algumas frases do livro:
"...vivemos, assim como sonhamos - sozinhos..."
"...pensei que sua memória seria como as outras memórias dos mortos, que se acumulam da vida de cada homem - uma vaga impressão no cérebro das sombras que haviam caído...."
"...vi naquele rosto de marfim a expressão de orgulho ensombrecido, de poder implacável, de terror covarde - de um desespero intenso e inevitável. Será que ele revivia sua vida em cada detalhe de desejo, tentação e rendição durante aquele momento supremo de conhecimento completo? Ele sussurrou uma exclamação para alguma imagem, alguma visão - exclamou duas vezes, uma exclamação que não passava se um fôlego:
O horror! O horror! ..."