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Sobre a banalidade do mal.....


Sobre o livro

Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal

Hannah Arendt

Editora Companhia das Letras - 2021. Escrito originalmente entre os anos de 1963/1964.

337 páginas

ISBN: 978-85-7164-962-0


Posso apostar que você, caro leitor e leitora desse singelo blog, já assistiu algum filme, série ou documentário que te impactou. E não me refiro exatamente aquele tipo de impacto positivo ou emocionante de uma cena heroica ou um romance com reviravoltas, não... Eu me refiro a momentos que o protagonista do filme ou algum outro personagem pratica um ato de maldade contra outra pessoa. Aquele tipo de ato que gera sentimentos dos mais diversos: revolta, nojo, asco, indignação, pavor, ou ainda, tudo isso juntos.

Posso também arriscar que em algum momento, conversando sobre tal filme ou série com amigos que também assistiram você compartilhe com eles da perplexidade de tal ato do personagem chegando até, muitas vezes, na seguinte conclusão: "como ele pôde fazer isso? Só em filme mesmo, eu nunca faria tal coisa”.

Pois bem, caro leitor, e se eu te disser que, apesar da sua justificada revolta e da certeza de que hoje você não faria tal ato de maldade com ninguém, é bem provável que você e eu, sob determinadas circunstâncias, seriamos capazes de conduzir atrocidades indizíveis?

Estou exagerando? Talvez. Mas é ai que convido o leitor a se aprofundar nesse excelente livro da Hannah Arendt e a descobrir como pessoas absolutamente normais puderam levar a cabo uma das maiores atrocidades praticadas pelo ser humano: o Holocausto de judeus, negros, inimigos políticos e minorias sob o regime nazista na segunda guerra mundial.

Antes de falar um pouco sobre a obra, acho importante algumas apresentações.

Hanna Arendt nasceu em 1906 em Hanover na Alemanha em uma família judia, rica e intelectualizada. Estudou na universidade de Berlim em 1924 e foi aluna de Heiddeger e Jaspers. Em 1941 se refugiou nos Estados Unidos e lecionou na New School for Social Research, em Nova York. Alem de professora, Hanna Arendt é uma filósofa política e uma das personalidades mais influentes do século XX. Sendo bem genérico e superficial, acredito que o pensamento de Arendt pode ser entendido como o de defender o pluralismo político, a importância de existir igualdade política e liberdade com tolerância e respeito às diferenças, visando a inclusão. Outras obras importantes: Homens em tempos sombrios e Origens do

totalitarismo.



Otto Adolf Eichmann, personalidade que dá nome a obra, foi um burocrata oficial das SS Nazista. Nasceu em 1906 em Solingen na Alemanha. Tinha formação em administração e tinha como função organizar a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de concentração das zonas ocupadas pelos nazistas no leste europeu durante a segunda guerra mundial. Capturado em 1960 e julgado em Israel, foi condenado à morte por crimes de guerra e executado por enforcamento em 1962.




O livro trata justamente da cobertura que Hannah Arendt fez do julgamento de Eichmann, como correspondente para o jornal The new Yorker. A cobertura feita não tratou apenas de detalhes jurídicos e das diversas complexidades e contradições do direito internacional, mas como pensava e agia alguém que foi diretamente responsável por levar milhões de pessoas ao trabalho escravo, ao sofrimento indizível e a morte nas câmaras de gás e crematórios nos campos de concentração.

A grande repercussão desse julgamento teve inicio antes mesmo do rito processual começar. Tudo começou aqui, na nossa vizinha Argentina.

“O leitor e a leitora um pouco mais atento pode ter se perguntado: “pera ai, só um instante. Como um criminoso nazista, nascido na Alemanha foi julgado em Israel? E o que a Argentina tem a ver com isso???”Vamos lá, vou procurar explicar”...

Nas décadas de 20, 30 e 40 havia muitos países simpatizantes dos movimentos fascista da Europa. Francisco Franco na Espanha, Mussolini na Italia, Salazar em Portugal e tantos outros inspiraram governos e movimentos na América Latina. Não custa lembrar que o nosso Brasil flertou com a Alemanha de Hitler no governo de Getúlio Vargas e tivemos até o movimento integralista de Plinio Salgado, tal movimento tinha uma clara inspiração não apenas na estética nazista, mas compartilhava de certos valores.

No final da Segunda Guerra Mundial, houve uma corrida desenfreada de vários membros do partido Nazista para fugir do julgamento dos crimes de guerra que o regime cometeu. Um grande número de nazistas fugiu para vários países da América Latina, incluindo a Argentina e o Brasil. Nesses países, os nazistas contavam com grupos de simpatizantes que forneceram apoio e a possibilidade de se esconderem, ganhando falsas identidades e a possibilidade de recomeçar a vida.

Foi o caso de Adolf Eichmann, que se escondeu em um subúrbio na Argentina sob o nome de Ricardo Klement e trabalhava em um fábrica da VolksWagen.

Quando o estado de Israel se formou em 1948, depois de um período inicial e turbulento de afirmação e consolidação do estado, agência do governo israelense tomou a decisão localizar os nazistas que haviam fugido no final da segunda guerra que ainda não haviam sido punidos pelos seus crimes contra os judeus. A partir dessa decisão, o Mossad( serviço secreto de Israel) formou forças tarefa para identificar , perseguir e, até mesmo, eliminar os nazistas fugitivos.

Foi em 1960 que o paradeiro de Adolf Eichmann chegou ao conhecimento do Mossad. Sabendo que um pedido de extradição para Argentina não surtiria efeito e considerando como fundamental levar a julgamento público alguém da importância de dele, o Mossad arquitetou uma operação secreta para sequestrar Einchmann da Argentina e leva-lo para Jerusalem.

E assim foi feito. Executando uma operação de alto risco, em solo estrangeiro e sem qualquer apoio além do próprio time, os agentes do Mossad levaram Eichmann para julgamento. Recomendo o filme "Operação final" na Netflix, que trata exatamente de como essa operação executada.

Agora que entendemos um pouco do contexto, vamos, finalmente, falar um pouco sobre a obra.

A narrativa de Hannah Arendt é densa e complexa. É como escutar um bom professor sobre um assunto que exige atenção e cuidado.

A narrativa começa com Arendt explicando um pouco sobre como o processo penal operava em Israel. Identificando quem eram as pessoas que fariam parte desse histórico julgamento, a promotoria, os juízes e a curiosa defesa de Eichmman que contava apenas com um único advogado, por escolha de Eichmman, enquanto a promotoria contava como uma grande equipe. Ela também destaca aspectos controversos na acusação, até mesmo hipócritas, como por exemplo: Como um estado pode julgar um cidadão de outro país por crimes que aconteceram em um terceiro estado? Afinal, Eichmman era alemão, deportou pessoas para campos de concentração no leste europeu e estava sendo julgado em.... Jerusalém?


Ao expor essa e outras contradições do processo penal, Hannah foi duramente criticada, afinal, ele era Adolf Eichmman e não poderia haver dúvidas de quem ele era e do ele fez, porém, serviu para mostrar que nem sempre as leis podem ser a resposta para a justiça.

Apesar de muito interessante e instigante compreender como o processo do julgamento se deu, a maior contribuição do livro está na análise da personalidade de Adolf Eichmann.

Não é difícil assumir que uma pessoa, cometendo as atrocidades de Eichmman, como mandar centenas de crianças para batalhões médicos das SS nazistas com intuito de servirem de cobaias para experimentos médicos, seja alguém com uma personalidade terrível, psicopata e sociopata, alguém que a mera visão provocaria repulsa....mas....não foi isso que foi visto. Pelo contrário. O que foi visto foi uma pessoa totalmente comum.

Alguém que poderia ser seu vizinho, discreto, respeitoso com a vizinhança, religioso até. Alguém que no trabalho foi tido como "dentro das expectativas", nada de anormal.

Progrediu na carreira, cumpriu tarefas que lhe foram passadas, recebeu promoções, tinha ambições de melhorar de vida como qualquer outro.

Diferente de determinado quadros nazistas, não tinha nenhum traço de antissemitismo ou racismo, pelo contrário, nos primeiros anos da guerra, sua excelente relação com lideres judaicos foi muito útil para os nazistas.

Como alguém, totalmente comum, e não uma "super mente do mal maquinando planos terríveis" foi capaz de levar a cabo tão desumana tarefa?

É justamente nesse aspecto que Hannah Arendt, partindo de Eichmman, faz uma análise sobre a sociedade alemã de então. Como a força de uma ideologia, divulgada e propagada à exaustão vai entrando no consciente das pessoas, normalizando ações que, até então, eram absurdas de se pensar. Como essa força de símbolos, discursos, repressão e autoritarismo vai anestesiando certas percepções de mundo, mudando significantes e significados e permeando os diversos extratos da sociedade. Como a possibilidade de ascensão social ligada diretamente a diminuição dos filtros de valores éticos e morais pode ir, gradativamente, normalizando o absurdo.

Nas palavras do livro, banalizando a maldade.

E a reflexão que podemos fazer é justamente essa. E se nós estivéssemos no lugar de Adolf Eichmman? E não estou dizendo em sermos adeptos da doutrina Nazista, mas em como valores, práticas e ações, antes tidas como imorais ou incorretas, podem começar a fazer sentido se percebemos algum ganho direto para nós mesmos?

Quantas vezes ouvimos que "bandido bom é bandido morto", sem saber exatamente quem ou o que é o bandido (e em especial, bandido para quem)?

Acredito que vale a reflexão.

Por fim, a autora finaliza o livro reforçando ainda mais a necessidade de ficarmos vigilantes. Vigilantes para um conjunto de valores e práticas que não tenham como principio a eliminação do outro, a discriminação e o preconceito. Ela também nos alerta que esse horrível fato histórico que foi o holocausto, não foi feito apenas por "sociopatas" malignos...não... Quem levou a cabo todo horror foi a sociedade alemã, seja pela omissão, seja pela

concordância.

Foi a pessoa comum que possibilitou a tragédia e como, de uma forma perturbadora, podemos estar perto de ser essa pessoa.

Algumas frases do livro:

"...desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos - "não matarás"- que guiam a consciência virtualmente desapareceram"...

"...mesmo assim, era inegável que ele sempre agiu por "ordens superiores, e se as provisões da lei israelense ordinária fossem aplicadas a ele, seria realmente difícil aplicar-lhe a pena capital..."

"...pois o cerne da questão é que não havia uma única organização ou instituição pública na Alemanha, pelo menos durante os anos da guerra, que não tenha sido envolvida em ações e transações criminosas...."

"...ele não precisava cerrar os ouvidos para a voz da consciência , como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência , mas porque sua consciência falava com "voz respeitável", com a voz da sociedade respeitável a sua volta... "

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